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Read Ebook: Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume II) by Lobo Francisco Rodrigues

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Ebook has 209 lines and 46490 words, and 5 pages

Release date: January 25, 2024

Original publication: Lisboa: Comp. Nacional Ed, 1890

BIBLIOTHECA UNIVERSAL ANTIGA E MODERNA

C?RTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO

POR

FRANCISCO RODRIGUES LOBO

VOLUME II

LISBOA COMPANHIA NACIONAL EDITORA Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES 40--Rua da Atalaya--52 FILIAES: Pra?a de D. Pedro, 127, 1.? andar, PORTO 38, rua da Quitanda, Rio de Janeiro 1890

LISBOA

TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA

C?RTE NA ALDEIA

NOITES DE INVERNO

DA PRATICA E DISPOSI??O DAS PALAVRAS

Todos ent?o se levantaram mostrando que ainda o faziam com pouca vontade, porque nas praticas de gosto primeiro cansam os sentidos, que os desejos.

DIALOGO X

DA MANEIRA DE CONTAR HISTORIAS NA CONVERSA??O

Depois que os amigos se apartaram, e D. Julio se recolheu a casa para repousar, achou n'ella uma occasi?o de desasocego, que lhe fez perder o somno. Porque lhe trouxe novas um creado, a que tinha encommendada a diligencia, que o prior se partia na manh? seguinte para a cidade, acompanhando aquella formosa peregrina para o recolhimento da clausura a que de t?o longe estava affei?oada: e como elle o ficou tanto de sua vista, e corrido comsigo mesmo dos poucos extremos, que por ella fizera, determinou com a occasi?o de ca?ador fazer-se encontradi?o no caminho, e acompanhar ao prior at? o fim da jornada: para o que tirou a luz aos melhores concertos de campo que tinha, e o vestido e galas mais lou??s, com que podia apparecer n'aquelle disfarce, usando o mesmo nos creados que levava. Ao outro dia p?z em execu??o este pensamento: e deixando para seu tempo o successo que teve, os da conversa??o o n?o souberam todo aquelle dia: e quando veiu a noite, que o acharam menos, houve quem d?sse novas de como o encontr?ra n'aquella empreza; e com esta occasi?o come?aram a pratica, e disse o doutor:--Sempre ouvi que os cuidados de amor em peitos generosos sahem com seus extremos ao longe; e que ent?o se for?am quando os outros sugeitos desconfiam. Aquelles encarecimentos de meu amigo D. Julio, aquelle silencio e segredo, aquelle respeito de cortezia t?o encolhido, parece que apanhava pedras para melhor tempo; e n'este costuma a fazer seus lan?os este diabinho do amor, porque tem outros da sua parte, ? conta de estorvarem seu bom proposito.--Segundo isso receiaes que a que engeitou principes mais louros que salmonetes, acceite agora um fidalgo retirado na aldeia, d'onde sahe com as galantarias mais penujentas, que marmelo tempor?o.--Muitas damas que engeitaram grandes senhores, n?o desprezaram grande amor: e outras, a quem offenderam procedimentos ingratos, estimaram de sugeitos mais humildes devidas cortezias.--N?o fa?amos offensa aos ausentes; nem a ella demos por arrependida, nem a D. Julio por t?o namorado: por?m maiores cousas houve no mundo. Tudo podia tecer o amor, e acabar a ventura: e se essa cahira ? conta de D. Julio, outra pudera ser peior empregada.--N?o estou bem com a ventura dos casamentos por amores.--Ser? por estardes mal nas muitas, que por elles se alcan?aram: e bem pud?ra eu a essa conta trazer alguma historia de notavel exemplo, se estas horas n?o estiveram promettidas a outro exercicio.--Antes a materia, que hontem ficou por acabar era como se havia de haver o cortez?o nos contos e historias; e vem a vossa a tempo, que servir? de exemplo, e, o que sobre ella se disser, de doutrina.

--Maravilhosa ? a historia para exemplo e tambem poder? servir d'elle no como se devem contar outras semelhantes, com boa discri??o das pessoas, rela??o dos acontecimentos, raz?o dos tempos e logares e uma pratica por parte de alguma das figuras, que mova mais a compaix?o e piedade; que isto faz dobrar depois a alegria do bom successo.--S?mente me pareceu comprida, sendo a materia d'ella muito breve.--Essa differen?a me parece que se deve fazer dos contos ?s historias; que ellas pedem mais palavras que elles, e d?o maior logar ao ornamento e concerto das raz?es levando-as de maneira, que v?o affei?oando o desejo dos ouvintes: e os contos n?o querem tanto de rhetorica; porque o principal, em que consistem, ? a gra?a do que fala, e na que tem de seu a cousa que se conta.--N?o sou contra esse parecer ; mas antes de averiguarmos a demasia, deixemos logar a que Pindaro comece a sua historia, e n?o lhe lancemos deante preceitos que lhe fa?am receio.--Necessaria me era grande confian?a para vencer os que tenho, sem me crescerem outros de novo: porque, se antes de ouvir a Feliciano tom?ra esta empreza, tivera um atrevimento menos culpavel; mas agora ser? despejo a minha ousadia.--Eu sou o que me corro da desculpa; e posto que me vinha bem que estes senhores acceitassem qualquer das vossas para n?o ficar t?o manifesta a vantagem que me fazeis, n?o quero que com essa fingida humildade castigueis a confian?a, com que me offereci.--Melhor me est? obedecer que competir ; quero contar uma historia semelhante ? vossa, s? para me aproveitar do modo que n'ella tivestes: se eu acertar, a v?s se deve o louvor de tudo; e se me perder, tambem sereis culpado, por a for?a que agora me fazeis.

--Ambos , me parece que podereis partir a foga?a, porque vos houvestes de maneira, que o que se atrever a julgar a melhoria, tomar? t?o difficultosa empreza, como seria a de querer agora competir com a boa linguagem e modo que tivestes.--Entendo que chegais braza ? vossa sardinha: mas n?o a haveis de tirar do fogo com a m?o do gato, nem livrar a vossa obriga??o, com a que n?s tenhamos de dar a Feliciano e Pindaro louvores t?o bem merecidos. Nenhuma raz?o tendes para n?o fazer no terreiro vossa cortezia.--Eu sou de voto , que lhe aceitemos qualquer escusa, porque a sua rhetorica serve mais aos contos, que ?s historias, segundo disse o Licenciado.--Grande aggravo se lhe faz em o tirarem da conta dos historiadores, que elle se confessou por esse, e por affei?oado aos livros de cavallarias; e al?m dos seus contos engra?ados sabe tantas historias, que a ser figura de arithmetica, poder? ser conto de contos.--Bem sei que me sommais para me diminuir: ainda que a meu pesar confesso que, se a historia de cada um de v?s me cahira nas m?os, houvera de sahir d'ellas com mais bord?es, e muletas do que tem uma casa de romaria, porque me n?o escapam termos das velhas, nem remendos dos descuidados que lhe n?o misture.--Quando menos ou?amos isso, ficar? ? vossa conta o exemplo do que se ha de fugir, pois os dois amigos nos ensinar?o a acertar.--Tambem errar por obriga??o ? difficultoso, mas aceito o partido, por vender por alheios meus erros proprios. E ouvi o que passa: farei de um pe?o dama, e de um conto historia por ser mais breve:

"Dizem que era um rei: vem este rei casou por amores com a filha de um seu vassallo: era ella t?o formosa que podia por sua belleza ser confiada, pois por essa alcan??ra o ser rainha: mas sem lhe valerem esses privilegios deu em t?o ciosa, que bem a m?o n?o dava o marido um passo que ella n?o acompanhasse com as suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ella, que j? mais vivia em paz com seu gosto. Vem ella, e por vencer esta desconfian?a vai, e manda secretamente chamar uma feiticeira, que n'aquella terra havia de muita fama, em cujo engano achavam os namorados uma botica de remedios para seus males. Assim que dizia: esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligencia, feitas algumas fingidas, metteu em cabe?a ? boa da rainha que o marido amava com grande extremo a uma criada sua, que ella pintou logo a mais galante, airosa e bem assombrada que havia no pa?o. Quando ella aquillo ouviu ficou guarde-nos Deus! como uma mulher transportada, e sem sangue; por maneira, que prometteu ?quella feiticeira que lhe faria e aconteceria, se desaffei?oasse ao rei d'aquelles amores, e empregasse n'ella todos os seus: a outra, que n?o queria mais que aquillo, vede v?s como ficaria contente; vem, e promette ? rainha que lhe daria tres aguas conficionadas de tal maneira, que uma, tanto que el-rei a provasse, bebesse logo os ventos por ella, e lhe quizesse mais que o lume dos olhos, com que a via; a outra, que, em a rainha a bebendo, parecesse a seu marido o maior extremo de formosura que havia no mundo; a terceira que, tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira, que a todos aborrecesse a sua vista. As palavras n?o eram ditas, a rainha lhe deu muitos haveres, e fez grandes merc?s e promessas; que muito facil ? de enganar a que deseja aquillo, com que lhe mentem. Vai a feiticeira d'alli a poucos dias, e traz aquellas aguas conficionadas, encarecendo muito a virtude, e segredo d'ellas: mas ou porque lhes errou a tempera, ou porque todas se resolvem n'estas boas obras, a mudan?a que ella queria que houvesse na vontade, e nos pareceres, lhe houveram de fazer na vida; que a pe?onha, que ? sempre material dos seus unguentos, penetrou de maneira que os teve a todos tres em passamento; e a bom livrar ficaram d'ahi a poucos dias sem juizo. Ainda bem a feiticeira n?o soube o damno que fizera, e que, por n?o trazer a m?o certa n'aquelles adubos, podia vir a estado de a p?rem nas da justi?a, desappareceu. Eis sen?o quando se juntaram todos os medicos eminentes, que havia no Reino; e depois de muitos mezes de cura, foram pouco e pouco cobrando os sentidos e entendimentos; e com a for?a do mal lhes cahiu a todos o cabello da cabe?a sem lhes ficar um s?. E n?o foi t?o ruim o partido, como era ter cabe?a sem elle quem antes o trazia sem ella. Tornando ao meu proposito, tanto que a rainha se viu t?o desfigurada, conhecendo o desatino que fizera, dando todas as culpas a amor, confessou seu erro, a criada sua innocencia, e o rei sua desgra?a: d'alli adiante, conformando-se com o exemplo daquelle successo fizeram vida sem ciumes: que d'elles e de casamentos por amores n?o escapam sen?o ou com as m?os nos cabellos, ou com elles pellados."

Com isto se levantaram continuando com a mesma pratica at? ? escada; que das coisas, que d?o satisfa??o ? vontade, n?o se sabem despedir as raz?es.

DOS CONTOS, E DITOS GRACIOSOS E AGUDOS NA CONVERSA??O

No dia seguinte, antes das horas em que os amigos se haviam de ajuntar para a conversa??o, Leonardo e os mais tiveram recados de D. Julio, em que lhes fazia a saber que chegara doente, e que tinha por hospede ao prior com outro irm?o seu: que receberia de todos grande merc? em quererem juntar-se aquella noite em sua casa, porque s? com este remedio daria allivio ao mal que trouxera da cidade. Elles, que eram interessados em sua sa?de, amigos e obrigados a o visitarem, ouviram que lhe deviam obedecer. Solino acompanhou a Leonardo: e n?o faltaram no caminho murmura??es discretas, nem em o doutor, e os estudantes juizos temerarios. Acharam a D. Julio na cama, o prior junto a ella, e o irm?o, que era homem mancebo, bem afigurado, e que no trajo vestia mais ao soldado, que ao cortez?o. Sentados todos depois de lhe fazerem cortezia, e comprimentos devidos, disse Leonardo:--Bem me parece, senhor D. Julio, que estaes j? t?o alde?o com a nossa companhia, que vos apalpam os ares da cidade; e que os regalos d'ella fizeram que o senhor prior se esquecesse d'aquella sua estalagem t?o cheia de vontade para o servir.--Onde v?s estaes ? a c?rte; e a falta d'esta me podia fazer alde?o. Do senhor prior fazer a troca por esta noite, tive eu a culpa; porque com esta condi??o acceitei em terra alheia a sua pousada nas casas do sr. Alberto seu irm?o, a quem tambem obriguei a que me fizesse esta merc?.--N?o me desculpo porque tudo o sr. D. Julio tomou ? sua conta: por?m em occasi?o estaes de haver muitas, em que mudeis o queixume, fazendo-o antes de minha importuna??o sobeja, que d'essa falta: porque vem apostado meu irm?o, pelo que lhe contei, a perder poucas noites d'esta aldeia, em quanto as tiverdes t?o boas como duas que me aconteceram.--Assim ser?o ellas melhores, porque com vossa presen?a, autoridade e discri??o, e com favores seus, ficar?o melhor assombradas; ter? sa?de este fidalgo, e ent?o vos convidaremos para a primeira; que ainda n?o sabemos de que vem maltratado.--Do meu achaque tive eu a culpa, que me entreguei hontem mais, do que era raz?o, na ceia; porque foi de pescado e marisco, e doces; e como cresceu com a novidade o appetite, quiz-se forrar ? custa do estomago de quantas vezes nos faltam semelhantes regalos n'este logar; e certo que tive um accidente muito rijo, e n?o podia com o cansa?o, que me deixou sem vossa vista, e d'estes senhores; e por isso me vali do atrevimento do recado.--O allivio ? tanto em favor nosso, que, a ser menor o mal, consentiramos n'elle.--Maiormente se ? o que eu cuido, que como experimentado de ordinario, julgo mais a enfermidade pelo pulso, que pela informa??o.--N?o parece que vol-o deve offerecer quem a tem t?o boa de vossa malicia, .--Antes estou t?o emendado em alguma, que vol-o pareceu que j? n?o suspeito sen?o o que ?.--Tarde vos mettestes n'essa recoleta e os que em velhos come?am a ser bons, pouco tempo lhes fica para usarem da virtude.--N?o sei logo como, sabendo isso, vos descuidastes tanto, que nunca para uma murmura??o vos achei descal?o.--Parece-me que ser? bom que o mais fraco aparte esta briga com pedir que me fa?aes merc? de me dizer em que se passou hontem entre v?s a noite.--Parte em cuidar em como passarieis o dia, e na grande falta que nos fizestes; a outra em dizer como se haviam de contar as historias na conversa??o; e n'aquella se disseram duas para nega?as, e uma para espantalho; ficou para continuar a materia de contos graciosos, ditos agudos e galantes: tereis v?s saude logo, e n?s com ella gosto para proseguir, e ouvir?o estes senhores o que n?o cuidaram.--N?o me ponhaes v?s isso em dila??o que antes em quanto mal disposto quero, como dizem, accrescentar esta noite ? vida; e se m'a desejaes como amigo, sabei que n'isto a tenho.--Se como a doente vos houverem de fazer a vontade, n?o sei se f?ra esta. Com tudo, ao menos para divertir, comece o doutor; que eu aqui trago as armas, com que costumo accudir a esta guerra; e cada um diga o seu conto, e conte o seu dito, encommendando a todos que riam do que eu disser, porque ? vicio, dos que cuidam que tem gra?a, a desconfian?a.--Tambem essa me parece, e dando-vos a obediencia por servir ao senhor D. Julio: A noite, em que nos faltou sua presen?a, se tocou n'esta conversa??o o modo que havia de ter o discreto em contar uma historia; fugindo muitos vicios, e bord?es que os nescios tem n'ellas introduzidos; e como em dependencia d'esta materia se falou nos contos galantes, que tem d'ellas muito grande differen?a; pois elles n?o consistem em mais, que em dizer com breves e boas palavras uma cousa succedida graciosamente. S?o estes contos de tres maneiras: uns fundados em descuidos, e desattentos: outros em mera ignorancia: outros em engano e subtileza. Os primeiros e segundos tem mais gra?a, e provocam mais a riso, e constam de menos raz?es, porque s?mente se conta o caso, dizendo o cortez?o com gra?a propria os erros alheios. Os terceiros soffrem mais palavras, porque deve o que conta referir como se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na occasi?o ficou mais enganado. E porque n'isto declaram menos as regras, que os exemplos, diga cada um o seu; que eu, por desimpedir o caminho, quero que passe por conto o que me aconteceu ha poucos dias:

"Fui a casa de um letrado meu amigo, a quem achei mui colerico, tirando pelas orelhas ao seu mo?o, que se desculpava, chorando, que n?o sabia de uns oculos, por que perguntava: olhei, e vi que tinha uns no nariz presos; perguntei-lhe se eram aquelles: o letrado ficou corrido, porque, tendo-os nos olhos, os n?o via; e o mo?o queixoso, porque as suas orelhas pagavam a pena que as do letrado mereciam."

--Esse desattento ? muito ordinario nos escriv?es que buscar?o duas horas na mesa, e nos papeis a penna que trazem na orelha. Mas para desattento, e descuido: o que n'este logar aconteceu ha muitos annos a um cortez?o que aqui vivia, que tendo uns amores humildes, que tratava com muito segredo, tinha um relogio de peito que trazia t?o esperto, e bem temperado, que fazia horas quasi a todos os moradores d'este logar. Desattentou, e estando com elle ao pesco?o uma noite em casa da delinquente, deu o relogio meia noite: e ?s escuras manifestou a toda a visinhan?a a verdade, que at? ent?o escondera dos olhos, e suspeitas de todos.--Ainda me parece peor o successo de um meu conhecido, que em um bairro de pouca visinhan?a tinha em Lisboa amores com uma mo?a que lhe estava j? affei?oada; falava-lhe de noite de uma janella, e ambos se temiam de outra, d'onde um visinho de parede em meio os espreitava: por se livrar d'este inconveniente, deu-lhe a mo?a ponto para uma noite lhe falar de mais perto, entrando pela janella, fazendo primeiro certo signal, com que ella havia de accudir. Buscou elle para isto uma noite chuvosa, e escura, poz sua escada, subiu; e errando a barreira, foi bater e fazer o signal na janella de que se vigiavam. Accudiu o visinho, e abrindo-a, viu o namorado seu erro ? candeia; e com o sobresalto d'esta desgra?a, cahiu com a escada e com o segredo na lama.

Festej?ram todos o conto com muito riso. E disse Solino:--N'este mesmo logar conheci um galante, que falava muitas noites de p? da janella a uma dama, com quem tinha amores; e assim em vendo visinhan?a recolhida, e logar quieto, disfar?ando-se com os moveis, que para aquelle mister tinha apparelhados, vigiando todos os portos por onde podiam contraminar a cautella do seu segredo, se vinha ao posto. Uma noite, que lhe n?o coube vez sen?o perto da madrugada, falando a mo?a com elle, sentiu dentro reboli?o; e por n?o ser sentida, pediu-lhe que se encobrisse com a sombra, e que ella tornaria a lhe fazer signal, como tudo se aquietasse. Sentou-se elle em uma pedra; e a mo?a vendo o negocio mal parado, por desmentir algumas suspeitas se foi lan?ar na cama: o galante, que como estava trasnoitado achou branda a em que se recolhera, adormeceu com t?o boa vontade, que j? alto dia foi achado como Leandro na praia de C?sto, dormindo com o trajo de outras horas, espada n?a, e rodela mal vestida, sem dar acordo; at? que, depois de estar ? vergonha, um amigo o recolheu a casa, e a dama padeceu a esta conta muitas, que costumam a ser o ganho d'estes empregos.

Com egual alegria foi recebido este conto, que o do prior: e disse Leonardo a Feliciano, e a Pindaro, que pois elles tinham dado exemplo dos contos de descuido, e desattento, a elles ambos tocavam os da ignorancia.--N?o nos guardastes para bom logar porque mais convinha aos mancebos contarem descuidos e desattentos dos velhos, que ignorancias suas: mas para que saibaes que n?o faltam umas e outras culpas n'essa edade, me n?o escuso.

Um homem de melhor parecer e estatura, que entendimento, se apartou a viver alguns annos longe da cidade em um monte, onde al?m de tratar pouco do culto de sua pessoa, com o ar dos matos, o discurso da edade, e algumas enfermidades que tivera, estava do rosto e das fei??es mui dissimilhado; vindo depois com nova occasi?o a viver ? terra, d'onde sahira, querendo-se vestir, e concertar ao galante, mandou que lhe comprassem um espelho: fez o creado dilligencia, e n?o achou nenhum de que se satisfizesse o amo, tendo provado muitos, ou quasi todos os que havia: e perguntando-lhe porque os engeitava, respondeu: "Porque fazem t?o mau rosto, e t?o avelhantado, que se n?o pode um homem de bem v?r a elles; e ha poucos annos que os havia n'esta terra t?o excellentes, que me faziam o rosto como de um anjo." Riu-se o mo?o dizendo entre si: "Mais se desconhece meu amo por ignorante, que por mal visto; pois ao espelho p?e a culpa que tiveram montes, e a edade."

--Outro t?o fraco de animo como de entendimento, passando em sua casa de uma para outra, com uma porcelana de sangue que levava para certo effeito, acertou de trope?ar na porta por onde entrava, e entornou-se-lhe o sangue pelas m?os: e accudindo logo com ellas ao chap?o, que lhe cahia, encheu a testa de sangue que lhe corria em g?ttas sobre o rosto: um filho, que olhando para elle o viu ensanguentado, come?ou com grandes gritos e choros a chamar sua m?e; a qual, tanto que achou o marido d'aquella maneira, com as m?os nos cabellos pranteava sua desaventura: elle ouvindo os gritos de todos, sem saber o que era, cahiu esmorecido na casa, onde podera morrer de nescio, como outros morrem de mal feridos.

N'isto se come?aram os mais a levantar. E perguntando a D. Julio se estava melhorado do seu achaque, respondeu que n?o sentia outra pena n'aquelle tempo mais, que o que perdera de t?o boa conversa??o; dando-se por mui obrigado do favor da visita, que, posto que aos illustres se deve em tudo respeito, obediencia, e cortezia, nenhum a sabe melhor estimar, que o generoso.

DAS CORTEZIAS

Com isto se levantaram todos, e deram boas noites; e, depois de recolhidos, gastaram em o desejo da que se seguia o mesmo espa?o que d'aquella poupavam; que muitas vezes a recrea??o dos sentidos vence a necessidade do repouso que os suspende.

DO FRUCTO DA LIBERALIDADE E DA CORTEZIA

Tendo Feliciano e seu companheiro por cousa sem duvida que se havia de tratar a materia dos cumprimentos a noite seguinte; e que j? d'aquella ficavam encetados para se haverem de proseguir; se aperceberam de exemplos, historias e raz?es mui escolhidas, com que lhes pareceu que deixariam a perder de vista os cortez?os velhos, em cuja mocidade ? certo que se usa menos d'esta alquimia de palavras f?ra da ten??o mental de quem as offerece. Com este fundamento se chegaram ao outro dia com muita confian?a: e juntos os amigos, disse o soldado:--Foi para mim t?o saborosa a conversa??o da noite passada, que at? a lembran?a d'ella antepuz ao repouso; e sem poder entrar em o do somno me lembrou uma historia famosa que succedeu a um capit?o nosso portuguez n'aquellas partes do norte, procedida de uma cortezia sua bem empregada, que lhe rendeu gra?a com as damas extrangeiras e naturaes, inveja nos companheiros, e nos contrarios, gloriosa fama com louvor, e honra da na??o portugueza. E como algum dia der logar o nosso exercicio, a hei de contar n'esta companhia em prova do muito pre?o e valor, que tem a cortezia com a gente generosa e illustre.--Certo que ser? bem errada cousa dilatarmos esta historia para mais tarde; que, posto que a todo o tempo as vossas o gastam mui bem aos ouvintes, agora tem ella o seu, e sahe bafejando ? mesma materia que temos entre as m?os, maiormente que, como seja em favor e honra do nome portuguez, n?o consentir? o sr. D. Julio na tardan?a.--Antes se n?o accud?reis com tanta pressa, me quizera j? queixar da dila??o: porque, por a materia, por a historia, e por ser o sr. Alberto o que a ha de contar, obriga por mil caminhos o meu desejo; e do d'estes senhores tenho a mesma opini?o.--N?o ? errada no que pertence ? minha escolha.

E porque todos vieram na mesma vontade, come?ou o soldado:

"Um capit?o portuguez, que nas guerras do Norte com singular esfor?o fez seu nome conhecido no mundo, e sua fama immortal na memoria d'elle; e que n?o representava menos na presen?a de sua vista, do que dava a conhecer a experiencia do valor de seu bra?o, com as mais partes de juizo, e galanteria, que pode desejar um cortez?o; cessando por raz?o da entrada do inverno o exercicio da guerra, escolheu, ou lhe coube em sorte, para alojar as suas companhias, um districto das terras do inimigo, que eram aldeias sem defens?o. Acertaram estas ser de uma senhora flamenga, donzella de muita qualidade; a qual vendo o damno sem reparo, que a seus vassallos se apparelhava, al?m de com a assistencia dos Hespanhoes perder o interesse das rendas que colhia, e de que se sustentava; n?o sabendo que meio tivesse contra este mal, lhe veiu ? imagina??o de com as armas, mais poderosas por brandura, que por rigor, conquistar a cortezia do capit?o, de cuja liberalidade e nobreza estava bem informada e satisfeita: e fiando de uma donzella, e de um rustico mensageiro o segredo do que queria, lhe mandou uma carta, que vinha a comprehender as raz?es que se seguem:

"Se o valor e grandeza de vosso animo vence a cubi?a e crueldade de inimigo, confiada estou que o n?o queiraes ser de uma dama illustre, cujo dote, pelos successos da guerra, poz na vossa m?o a ventura: e pois o ganho de me despojardes d'elle ? t?o pequeno, que nem basta para agazalhardes bem os vossos soldados; perdoae antes a essas fracas aldeias com brandura, havendo que ganhaes com ella o cora??o de uma mulher nobre, que em quanto viver vos ficar? captiva , e pois de quem sois, e da fama que vos abona e engrandece se n?o espera que queiraes perseguir a uma dama rendida a vosso nome, dae-me liberdade para que em o de meus vassallos, para quem a pe?o, vos offere?a os mantimentos, que ha n'esse pobre senhorio; que ent?o ser? mais vosso, quando eu o possuir com o favor e merc?, que de v?s espero, etc."

O capit?o, que, al?m do valoroso animo que tinha, sabia conhecer o muito que em semelhantes lan?os se ganhava; lendo a carta se alegrou por extremo, como quem achara occasi?o de se mostrar gentil-homem a t?o illustre e discreta senhora: e tra?ando primeiro o como melhor poderia responder com effeito a seus rogos; mandando vestir o rustico que trouxe a carta, e fazendo-se-lhe o agazalho e tratamento que, por quem o mandava, lhe era devido, sem respeitar a incommodidade do que para os seus n?o tinha, respondeu em maneira semelhante:

"Ainda as armas me n?o deram maior gloria que esta ventura: porque tenho por t?o grande a de vos servir, que estim?ra em menos dominar um grande senhorio da terra, que ficar agora por guarda e defensor das vossas, as quaes tomo tanto ? minha conta, que n?o s?mente lhe tirarei a oppress?o dos soldados que lhe causavam receio, mas farei que nenhuns outros lhe possam fazer offensa. Perdei, senhora, o cuidado d'ella; e cr?de que saberei estimar o vosso dote mais que a propria vida. E se ? custa d'ella quizerdes conquistar bens da fortuna, que egualem o pre?o das gra?as que vos deu a natureza, elle ser? mais copioso, e eu n?o ficarei menos satisfeito. Por as merc?s, que me offereceis, vos beijo as m?os; por?m n'ellas as renuncio; porque mais quero parecer a estes companheiros contrario vencido, que amigo obrigado."

N?o se satisfez o capit?o com responder tanto a gosto d'aquella dama; mas ordenou juntamente que, quando tivesse a carta, lhe chegassem as novas do que por a sua fazia; e para isto escreveu a um capit?o, que alli perto se aloj?ra; do qual tendo licen?a, se foi para elle com os seus soldados, aos quaes com regalos, vantagens, favores, e cortezias ia satisfazendo a falta do alojamento que deixaram. Soube isto a dama, cujo nome era Floriza; e vencida do primor da obra, e das palavras da carta do Luzitano, o come?ou a amar por informa??es que cada hora lhe trazia a sua fama; que estas costumam a ser mais favorecidas, que as da presen?a. Esta desejava ella de v?r extranhamente; por?m a difficuldade de contrario lh'a fazia impossivel. Accommetteu por vezes fazer-lhe presentes, a que elle nunca deu logar; antes n'aquelles, que libert?ra, havia poucas pessoas que n?o experimentassem favores e boas obras do capit?o, todo o tempo, que durou a visinhan?a do seu alojamento. Passado o inverno, tornaram a continuar as guerras d'aquella fronteira, muito mais intricadas e perigosas, que as que haviam precedido: e como n'ellas o capit?o buscava sempre as occasi?es de maior risco; porque o seu esfor?o o punha sobre o animo dos mais guerreiros; na defens?o de um posto, que lhe quiz ganhar o inimigo, ficou elle mui mal ferido, por?m o contrario desbaratado, e com muitos soldados menos. Chegou a fama do successo ? agradecida senhora, que o sentiu por extremo; e desejosa de fazer algum, com que manifestasse a pena que tinha de seu damno, determinou de passar ao campo contrario a o visitar: e havida a licen?a, sem levar comsigo mais que duas creadas, atravessou em um coche o arraial. Sendo d'isto avisado o capit?o, preveniu os seus soldados para com bellicas alegrias receberem e festejarem a sua chegada. E mandando entrar algumas companhias de guarda, lh'a fizeram a ella com grinaldas de fogo sobre os morri?es, e com bombas em os piques, que parece que ardiam at? a empunhadura da manopla; e outros foguetes e inven??es de polvora muito apraziveis. Sahiu ella do coche ? porta da tenda do capit?o, vestida de uma t?la verde, semeada de borboletas de ouro, que lhe estava muito bem; porque dava gra?a ? neve do seu rosto, que com a afronta d'aquelle atrevimento se enchera de rosas encarnadas; os olhos t?o alegres, que parece que se vinham rindo das estrellas, como os cabellos o poderam fazer do sol, se elle j? n?o estivera escondido de pura inveja. Sobre elles trazia uma rede de prata, cujos la?os se rematavam com perolas ? maneira de camarinhas; e da parte esquerda tres plumas altas, uma branca e duas encarnadas, presas a um camafeu: sobre os pensamentos das orelhas rosas de fl?res perfiladas de ouro, e pendurado em cada uma um Cupido, que quebrava o arco sobre um diamante; no pesco?o uma volta pequena com pontas de aljofares muito miudos, e uma gargantilha de uns passarinhos de ouro com os peitos de esmeraldas. As creadas vestiam de setim amarello gualde, com guarni??o de prata. O Portuguez, posto que n?o quizera mostrar descuido no que convinha para se entender, que no ornamento militar, e cortez?o da sua pessoa, e tenda n?o faltava, como estava ferido, e incapaz de se valer das galas; converteu tudo em pavilh?o rico, arma??o custosa, e troph?os de armas, que faziam a tenda muito agradavel, e auctorisada. D'alli com grande acatamento e inclina??o, e com os olhos cheios de alvoro?o festejou a boa chegada da formosa e discreta Floriza, que com as palavras accrescentou infinitas gra?as ? sua formosura. Durou a visita grande espa?o com mil finezas, e extremos de cortezia. E posto que o capit?o com as feridas estava desfigurado, representava no brio e modo de seu parecer a gentileza de sua pessoa, sem a desculpa, que uns olhos affei?oados offerecem com a parte offendida. A dama se lhe rendeu de maneira, que o mostrava na vista, empregando na sua muitas vezes os olhos. E por n?o ter mais tempo, suspensos os que esperavam v?r o successo da visita, lhe deu fim com nova gra?a: e voltando por onde viera, achou a mesma guarni??o, e ordem nos soldados, que quando entr?ra. Logo entre elles e nos mais do exercito se praticou a causa d'aquelle excesso e novo extremo de cortezia, havendo que a que o capit?o tinha com ella usado o merecia. Por?m n?o fez termo aqui o seu desejo; que depois de ausente, mandando por muitas vezes a visital-o na convalescen?a das feridas com que o vira, j? de todo livre d'ellas, lhe escreveu Floriza, dizendo que, pois o vira em tal estado, e n'elle lhe parecera t?o bem a sua gentileza, lhe pedia um retrato seu, tirado no campo em que elle f?ra mais gentil-homem, e se content?ra mais de suas partes. Elle, que em nada perdia o cuidado de se mostrar cortez, se mandou retratar no estado em que recebera a sua visita: e n'este lhe mandou o retrato, escrevendo-lhe que, s? quando merecera a ventura de a v?r, se tivera por galhardo, e gentil-homem; e que n?o s?mente n'aquella occasi?o, mas em todas as mais, que se lhe representasse aquelle bem, seria de si contente, e satisfeito. E tambem procurou logo ter da mesma senhora outro retrato no mesmo trajo, com que o viera visitar, tirado por o natural, com muito artificio, sem ella ter noticia d'esta diligencia, sen?o depois que era manifesto que o capit?o o tinha na sua tenda mui venerado. E sobre um e outro se tratavam de recados com muitas gentilezas e cortezias, com a fama das quaes se accrescentou tanto a formosura e discri??o de Floriza, que d'alli adeante era mais conhecida e requestada assim dos nobres do exercito, como dos senhores comarc?os, com que as suas terras avisinhavam. Sobre todos os mais entrou nesta affei??o um gentil soldado filho do conde de Hieme, fidalgo, de cujo esfor?o, brio, e gentileza havia no campo geralmente muita satisfa??o, e em muitos soldados nobres n?o menor inveja. Este se determinou que na primeira occasi?o, que houvesse de assalto, havia de fazer mais do possivel por se encontrar, e provar as armas com o hespanhol, a quem Floriza mostrava t?o declarada affei??o. Por?m como esta escolha havia de ser da sorte, e n?o da sua vontade, succedeu que a primeira occasi?o, que houve, de poderem vir ?s armas, foi sobre o contrario querer ganhar um posto para se entrincheirar n'elle, e fazer sombra a uma mina secreta, que para seus intentos ordenava. Foi revelado este ao general; e com um dissimulado apercebimento tomou ?s m?os os inimigos, entre os quaes captivou o gentil soldado, que se desejava assignalar n'aquella fronteira escurecendo a fama do Luzitano, a quem invejava. Elle, que j? sabia d'aquella preten??o, fez muita diligencia para que ficasse depositado em seu poder; o que alcan?ou facilmente. E tratando-o logo com termos de excessiva brandura, e affabilidade, o tinha mais como hospede mimoso, que como preso vencido. De sorte que enleado elle lhe perguntou a causa, porque lhe fazia tantas merc?s, podendo-o tratar como seu escravo, e ao menos do modo que o costumam fazer os capit?es aos mais vencidos. "Eu vos trato como companheiro, por saber que, f?ra da obriga??o de Marte, nas de Cupido servimos ambos a um senhor: e sei que ainda n'esta egualdade me tendes muita vantagem, porque alcan?aes na presen?a o premio de vossos extremos; e eu ausente fa?o s? emprego de meus desejos; e por esta via me podera obrigar a inveja a m? ten??o, que em v?s j? fez o ciume. Por?m como da senhora Floriza n?o pretendo mais, que ser ella amada, e servida como merece; e sei de vossa qualidade, e valor que sois digno sujeito da sua formosura, como a cousa j? sua vos quiz antes offerecer a casa, que o campo: n'esta estareis servido, n?o como mereceis, e eu desejo, mas ? medida das incommodidades da malicia, de que j? tendes experiencia." N?o s?mente espantado, mas corrido ficou o illustre mancebo do bom termo e gentileza do capit?o: e pondo os olhos n'elle com o animo mais affei?oado, que o com que partira do arraial, lhe disse: "T?o alcan?ado estou do meu engano, qu?o vencido e obrigado de vossa cortezia: e j?, senhor, n?o desejarei liberdade d'esta pris?o mais, que para ser mais vosso quando f?r meu: e agora vejo qu?o bem adivinhava o meu receio em me fazer que temesse a vossa competencia, s? por o que a vossa fama lhe descobria; mas agora, pelo que sei da presen?a, n?o s? confessarei o muito que ella acredita, mas que deve ainda muito mais ao vosso valor, e d'elle serei eu a mais fiel testemunha ante a senhora Floriza." Eu, "senhor soldado no servi?o d'esta senhora n?o pretendo mais, que, conhecendo-a por tal, n?o faltar a seu credito, honra, e satisfa??o, e conhecer ella de mim, junto com esta verdade, que n?o sou ingrato ? merc? que me faz. E muito melhor satisfa?o a esta obriga??o em lhe gabar o muito que vos deve, e o qu?o acertada ser? a sua elei??o, escolhendo-vos por esposo, que em me mostrar competidor com vossos pensamentos. Com este presupposto podeis usar da minha vontade, e companhia sem receio, nem ciume. E se v?s tiverdes confian?a, e ella me der licen?a que eu seja terceiro de se effeituar esta preten??o, d'aqui prometto de fazer extremos por facilitar brevemente o meio de vossa liberdade." O soldado cada hora mais vencido, e devedor a t?o bom procedimento, se lhe lan?ava aos p?s, sem saber cousa que respondesse n'este mesmo intento. Tratou logo de sua soltura; a qual se fez brevemente com todos os mais, que n'aquella occasi?o ficaram presos; trocando-se por outros hespanhoes, que tambem havia no campo contrario. Por elle e em seu favor escreveu ? formosa e agradecida Floriza, que com esta fineza de nova cortezia dobrou sua affei??o: e vendo que elle era o que lhe havia escolhido tal esposo, o acceitou por esse, ficando ambos unidos em aquella fiel amisade do cortez Lusitano, que sempre conservaram, posto que nos limites de contrario a respeito de seu rei; que estes s?o os poderes da cortezia, que n?o s? vence e obriga os mais barbaros animos do mundo, mas faz concordia e firme lian?a em cora??es t?o inimigos.

E deixando exemplos antigos e modernos, com que posso provar o muito que p?de a liberalidade para atar, vencer e adquirir animos agradecidos: com tudo me parece que tem muitas vantajens o cortez ao liberal: e a raz?o ?; que a gente, que se obriga do soccorro do interesse, ? de muito menor condi??o, que a que se cativa da cortezia; e quanto ? maior ganho ser a esta amavel, que a outra acceito, tanto vence a cortezia ? liberalidade para o effeito que dizemos. O pobre, o humilde, o necessitado, o perseguido, o homiziado, o vagabundo e o taful estimam mais vezes a fazenda que lhe dais, que a cortezia que lhe fazeis: porque o seu ponto n?o ? de honra, sen?o de interesse. Mas o honrado, o nobre, o cavalheiro, o cortez?o, o brioso, o discreto e o rico antes quer que o honreis, que n?o que o enrique?ais. Os grandes com cortezias roubam os cora??es dos menores, quando com maior liberalidade d'ellas os favorecem: porque o animo generoso, posto que sente muito a estreitesa propria, mais lhe custa o despreso alheio, por n?o perder a opini?o que de si tem ? conta do com que lhe faltou a fortuna. Contam que um principe hespanhol tinha um creado seu, a quem queria muito, e de cuja fidelidade confiava mais, conhecendo-o por verdadeiro, fiel, honrado e brioso: e encarecendo-lhe o principe a confian?a que d'elle tinha, lhe perguntou: N. por que pre?o me fizereis uma trai??o? Ao que elle respondeu: A v?s, senhor, por nenhum pre?o; mas por um despreso muito me rece?ra de mim mesmo. De outro ouvi contar que, honrando com favor em publico a um creado seu, a quem n?o pagava bem os ordenados de seu servi?o, e outras dividas caseiras; querendo depois o mesmo senhor fazer a conta d'estas obriga??es, lhe respondeu o creado: V?s, senhor, me deveis o com que cuidastes que me pagaveis; e agora vos devo eu dares-me o que me n?o promettestes, e o que eu tinha em maior estima??o: por isso fazei livro novo, riscando as lembran?as passadas, que s? as presentes o ser?o na minha memoria, na qual conhe?o que vos devo muito. De maneira que o que ? nobre, ou tem partes que o sejam, mais abra?a a cortezia que o proveito. E certo que at? aos senhores v?os, e ambiciosos de serem endeosados est? melhor esta liberalidade, que outra alguma: porque ? grangearia n?o s? para ser amado, mas para ser buscado e servido: porque sendo amavel por ella a todos, cada um o acompanha, o grangea, o louva, o acredita e deseja de lhe dar quanto tem; porque s? tal homem lhe pare?a digno de ter tudo. Tambem declaro que o cortez ha de ter a elei??o do liberal, para n?o levar a todos por a mesma medida, mas distribuir conforme a raz?o os effeitos do dom, que lhe deu a natureza. E tem tal for?a de obrigar a cortezia, que n?o s?mente a faz ao que a recebe, sen?o ainda aos que a v?em fazer, por satisfa??o, por imita??o, por inveja, e por outros caminhos. Uma infante n'este reino tinha uma creada de n?o muita qualidade, por?m de tantas partes, gentileza e discri??o, que a antepunha a muitas que a serviam com melhor foro do que esta tinha, que era mo?a da camara. Desejando a senhora grangear-lhe a ventura e gra?a dos cortez?os, uma vez que viu a sua casa acompanhada d'elles, mandou em publico que lhe chamassem aquella creada, nomeando-a; e que lhe trouxesse papel e escrevaninha. Como isto era officio, que pertencia ?s damas, veiu a mo?a; e esteve parada com o que trazia, esperando que o viesse tomar da sua m?o quem tinha a cargo de o offerecer ? infante: a qual tornando-a a chamar lhe disse em maneira que todos ouviram: Chegai; que, ainda que o officio seja de outrem, n?o podeis ter por estranho o que mereceis. E em quanto a mo?a esteve de joelhos, e a senhora escrevendo, lhe falava com o rosto cheio de alegria, dizendo-lhe entre outras coisas: O intento, que n'isto tenho, posto que logo o n?o saibas, d'aqui a pouco o vir?s a saber. Foi assim; que, vendo os cortez?os o caso que a infante d'ella fazia, um de muita qualidade a pediu para sua esposa, e se casou com ella, movendo-se de v?r aquella cortezia, para o que um copioso dote o n?o obrig?ra.--Extremamente provastes vossa ten??o e me parece certo que essa ? a verdade, que se ha de ter n'esta materia da cortezia: porque n?o p?de a vileza do interesse egualar-se com a nobreza e magnanimidade da honra.--Galante coisa ? quereres v?s temperar todas as panellas, e falar sempre ? vontade ao senhor D. Julio, o qual n'esta occasi?o acudiu por si, para nos culpar a n?s: por?m elle e v?s me dareis licen?a para que tire ? luz uns embargos, que tenho a essa resolu??o; em os quaes entendo provar que s? a liberalidade, no dispender faz amaveis aos liberaes, e aos devedores cativos. E se dizeis que n?o s?o estes os nobres; ouvi aos poetas que subiram mais a corda, dizendo que dadivas venciam homens, e obrigavam Deuses: e o rif?o diz, que quebram pedras. Boa cousa ? a cortezia, mas nenhuma compara??o tem com a liberalidade. Falaes-me em quem d? o seu para soccorrer a outrem, no que soccorre ao aperto, ? falta, ? occasi?o, e ? necessidade: que coisa poz aos homens entre as estrellas, se n?o o saberem dar? que s? isto leva ap?s si os homens, as feras, os animaes e as aves. O outro Plafon andava o seu nome no bico dos passaros pelos outeiros, e coruch?os da cidade de Ephezo, porque sustentava ? sua custa as mesmas aves. E v?s quereis que o outro, que n?o lan?a agua a pintos, s? com uma inclina??o dobrada, uma mesura rebatida, e umas palavras doces leve as lampas a um liberal? E al?m d'isto, como p?de ser que obrigue e ganhe mais o que emprega menos? e que ven?a o cortez com uma barretada o que mereceu um liberal com obra t?o custosa, como ? dispender fazenda? Alexandre, Tito, Fabio, Flaminio, Tullo Hostilio, e outros similhantes, n?o deixaram assombrado o mundo com sua grandesa, e vencido o tempo com sua fama por cortezes, sen?o por liberaes: porque a cortezia n?o satisfaz mais que a vaidade; e a largueza acode ao principal da vida. E de mim confesso, como povo, que antes quero um descortez liberal, que um cortez?o miseravel: porque esses camele?es da cortezia, que se sustentam com os ares d'ella, n?o s?o t?o firmes como cuidais; nem ?s vezes falam de fartos; e p?de ser que n?o enjeit?ram os comprimentos de contado, e que renunciaram facilmente os da urbanidade cortez?.--N?o falta na companhia quem queira defender a vossa parte, e a do liberal: por?m uma duvida tenho, e ? que esses, que de maior liberalidade fizeram extremos no mundo, todos eram prodigos como Alexandre, Tito, e outros similhantes.--Na dignidade real cabem todas as grandezas sem a limita??o com que tratamos d'esta virtude; que Alexandre dava cidades, e talentos, sem que esses lhe pudessem fazer falta: o que nos menores tem muita differen?a; porque o modo n'elles sustenta a virtude para que com a muita liberalidade n?o pere?a a liberalidade: e nos reis e monarcas a ten??o acredita a obra, se ? feita de arrogancia, e benignidade; porque o liberal sempre acha desculpa para haver de fazer merc?s como Alexandre, que a Perilo se desculpa, conformando-se com quem era para n?o culpar a demasia do que lhe dava: e a Xenocrates, que lhe diz que n?o lhe s?o necessarios os cincoenta talentos que lhe manda, responde que, se tem amigos, para elles os ha mister, pois a elle n?o bastaram as riquezas de Dario para os que tinha. E pelo contrario Antigono, a quem Diogenes pedia um talento, se escuzou dizendo que pedia muito para philozopho; e pedindo-lhe um dinheiro, disse que era pouco para dar um rei. De maneira, que o que o avaro busca para negar, acha o generoso para fazer merc?s, que, conforme ao que diz Marco Tullio, s?o grilh?es da liberdade dos homens. E porque ? tarde, me dai por desobrigado d'estes.

Com isto se levant?ram todos; e Pindaro, e Feliciano o fizeram ass?s descontentes com a magua dos seus conceitos mal logrados; que quando, depois de escolhidos, n?o vem a lume, deixam o entendimento arrependido, a memoria queixosa, e a vontade offendida.

DA CRIA??O DA C?RTE

Porque todas as cousas de novo na primeira vista contentam mais, e com maior raz?o a quem vive na aldeia, em a qual a continua??o das que se offerecem de ordinario deleitam pouco quando n?o enfastiam muito: estavam os amigos t?o affei?oados ao irm?o do prior pela sua arte, e bom modo de falar e proceder, que vieram ao dia seguinte muito alvoro?ados a o buscar nas horas costumadas, offerecendo-lhe cada um por seu caminho aquelle desejo, a que elle por todos se sabia mostrar muito obrigado. Depois de darem fim aos cumprimentos, que levam sempre a vanguarda n'estas batalhas, lhes disse Pindaro:--Posto que o natural de cada um ? a principal parte que o favorece, para em todos os exercicios se melhorar na communica??o dos outros homens; nenhuma escola me parece melhor para os bem nascidos, que a milicia. E ainda que me n?o ensinasse a experiencia esta verdade, claramente a conhe?o no exemplo de muitos soldados, com que me achei em occasi?es; e sobre todos do senhor Alberto, que parece um exemplar, e espelho, em que se pode v?r um perfeito homem de guerra, e de c?rte, pelo que de ambas colheu, aperfei?oando a doutrina d'ellas com a clareza do seu engenho e a disposi??o, e vantagem de seu entendimento.--Eu desejo merecer a boa opini?o, com que me honraes deante d'estes senhores, e logo a pago mal com a desacreditar tanto ? vista d'elles: pelo que me era necessario accudir a essa falta com nova desculpa, dizendo que ha olhos que de argueiros se pagam; e que mais favorece um engano, que muitas verdades, porque bastava no vosso ter ventura para a alcan?ar em t?o honrada conversa??o. Por?m devo attribuir aos louvores da milicia os de que me fazeis merc?; e d'elles, como soldado, tirarei a minha parte; ainda que tendes tantas, que, quando o sejaes n'esta competencia, ter?o as lettras muita vantagem ?s armas.--N?o s?o de pouca estima os cumprimentos se continuar com estes principios o discurso que se pode fazer sobre a differen?a da crea??o da c?rte, da milicia, e das universidades, que s?o os tres exercicios nobres, em que os homens se occupam, apuram e engrandecem; e n'elles se pode gastar a noite com muita satisfa??o dos presentes, pois assim pode cada um saber muitas cousas das que conv?m ao particular de sua profiss?o.--Entendo que escolhestes bem, e que vos cabe o primeiro logar para tratar da c?rte: ao senhor Alberto o segundo para dizer da milicia: ao doutor Livio o terceiro para falar das universidades. E se eu n'este voto parecer atrevido, confian?a me deu a liberdade da nossa conversa??o, e o costume dos mais. "Todos approvaram a escolha de Leonardo, e a reparti??o de D. Julio. Por?m Solino n?o ficou t?o satisfeito que se calasse, antes disse para D. Julio:--V?s, por vos forrardes do trabalho, fintastes os outros. E posto que n?o se pode ir contra elei??o t?o acertada, se o ensino da c?rte se houver de pintar pela tempera velha, e tratar s?mente do canto ch?o, de seus estilos, e gentilezas, ninguem dar? melhor conta d'isto que o senhor Leonardo; porque se achou no pa?o ainda em tempo que eramos troianos, e viu luzir o que agora est? cheio de ferrugem. Mas se houver de falar ao moderno, em que ? tudo de outra freguezia, receio que lhe fique muito por dizer.--O mesmo receio tenho eu por?m n?o s?o os males e bens da c?rte t?o pouco antigos como vos parece; que j? no meu tempo havia os mesmos queixumes de agora: por?m ha tanto que dizer d'ella, que de necessidade h?o de passar muitos pela malha a quem vive ha muitos annos n'este desvio, e que no remanso do descuido da vida afogou todas as lembran?as d'ella; e assim houvera o senhor D. Julio de passar esta obriga??o a outrem que d? melhor conta d'ella.--N?o fa?o eu as minhas t?o erradas que vos desobrigue." A isto ajudaram todos os presentes; e Leonardo come?ou d'esta maneira:

DA CREA??O NA MILICIA

N'este tempo, porque os mais estavam j? levantados, se despediram. E Solino se foi pendurando em palavras de galanteria com o doutor com tanta gra?a, que desejaram os companheiros poderem fazer o caminho mais comprido; que, por muito que o seja, a boa conversa??o o faz parecer breve, e desejado.

DA CREA??O DAS ESCOLAS

Estava t?o desejoso e alvoro?ado Pindaro para na crea??o escolastica passar aquellas duas columnas, que Leonardo e Alberto levant?ram no estreito limite da policia civil, que, imaginando que lhe fugia o tempo, sem o dar ao doutor, para vir com elle, obrigou a Feliciano a que se fossem mais cedo a casa do D. Julio, dizendo-lhe pelo caminho:--Certo que n?o desejei cousa como alliviar ao doutor do trabalho d'esta empresa; que, posto que a sua auctoridade culpa o meu atrevimento, tambem o amor, que tenho ?s sciencias, o favorece.--Muito bem estivera na vossa m?o por qu?o boa a tendes para tudo: por?m n?o desejeis de a tirar da sua; porque at? em aquillo, que eu sei muito melhor que outros, quizera antes ouvir aos que sabem mais, que escutarem-me elles: e a raz?o ?, que, al?m de aos antigos estar t?o bem a confian?a, como aos mancebos o receio, vou pesando o que lhes ou?o com o que eu tinha para dizer, e fa?o mais certo juiso de meu cabedal para outras occasi?es. E n'este appetite me parecestes homem que sabe a historia que ouve contar, que se adianta nos passos d'ella ao que a vai dizendo, e por mostrar que a sabe, faz perder o gosto ao que a ouve, e o feitio a quem a relata. Lan?o ? de habil essa prestesa, e ferir lume com qualquer golpe; mas de sizudo dissimular as faiscas.

N?o vos abataes a todo o passaro, ainda que seja da vossa ral?, que n?o haver? quem queira ca?ar com vosco.--Mas quereis que me fizesse mar morto, sem levantar ondas quando me vem o vento t?o fresco: muito repugna a agudeza do engenho ? paciencia de um fleugmatico como v?s, que n?o sei dobrar as m?os quando a p?lla me vem pular aos p?s; e cedo vereis se tem raz?o a minha cubi?a.--Perto estaes do desengano, e muito mais perto da casa de D. Julio.

N'esta pratica chegaram a ella, e n?o muito depois os companheiros, e como Solino, em entrando, os vio sentados, disse logo:--Todavia viestes deante para mostrares que ereis os mordomos da festa: e muito confiados na eloquencia, e auctoridade do doutor, vos parecer? que tendes a foga?a em casa, e eu cuido o contrario, se eu entrar na lucta, e vos n?o valer; que o dia, que se prega de um Santo, ? elle o maior de todos.--N?o sei que tendes contra as lettras que, sendo t?o grande amigo de Pindaro, vos picaes sempre contra a sua profiss?o.--Dir-vos-hei o d'onde isso nasce; e ? que as lettras n?o posso negar que s?o cousa boa, mas assentam as mais vezes sobre ruim papel; e como ? feito de trapos, tenho achado tantos n'elles, que me aborrecem.--Melhor dissereis trampas, . Por?m no amigo que por vos fizeram?--Ir-se-me todo em lettras --N?o ? raz?o que vos adeanteis tanto para me tomar a estrada: deixae-me primeiro falar, que eu vos darei tempo quando me quizeres arguir; que, por mais que se apure a vossa murmura??o, n?o pode diminuir os quilates e pre?o das sciencias.

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